segunda-feira, 14 de maio de 2018

O RAPAZ QUE VIROU MULHER


UAA se encontrou com Antônio Neto num famoso café próximo a Av. Paulista, em São Paulo. Chegamos um pouco atrasados, afinal o trânsito de SP é sempre imprevisível, mas isto não nos impediu de encontrar Antônio tranquilo, sorridente, com braços e coração abertos. Ao olhar nos olhos dele, era impossível dizer que aquele mesmo homem havia vivido 20 anos no corpo de uma mulher – no caso, Nádia, uma mulher que ele foi e não se arrepende de ter sido.
“Quando eu digo que voltei ao gênero masculino, muita gente acha que eu encontrei Jesus. A minha transformação não tem nada a ver com religião. Por que eu deveria continuar carregando uma mulher que, 20 anos depois, deixou de ter significado para mim?”, diz num tom calmo e suave. Antônio é bom com as palavras. Te conduz com a maestria de um contador de histórias profissional. Não é de se espantar que sua trajetória de 4 décadas – e duas transformações de gênero – tenha virado livro, Mel e Fel, o qual ele demorou três anos para publicar.
Sem editora, a única forma de conseguir uma cópia é pedindo para ele. Algo que UAA recomenda. Conversar por algumas horas com Antonio é descobrir o verdadeiro significado de índole e essência – algo que não tem a ver com gênero, sexo, etiqueta da roupa ou status.
Conte-nos um pouco sobre sua infância em Fortaleza…
Eu sou filho de um comerciante e de uma enfermeira, que faleceu logo após eu nascer. Eu tinha 11 meses quando ela morreu de Leucemia. Meu pai era dono de um comércio e não tinha como me criar sozinho. Ele resolveu voltar para a casa dos pais dele, onde viviam meus avós e cinco tias solteiras. Na ausência dos meus avós e do meu pai, eu ficava nas mãos das minhas tias, e das duas empregadas que tínhamos em casa. Minhas tias tinham suas atividades e seus namorados; eu era um menino bem sozinho.
Quando você foi abusado sexualmente pela primeira vez?
A minha avó adotou um rapaz quando ele ainda era criança. Ele cresceu fazendo parte da família e se tornou um tio de consideração para mim. Eu deveria ter 4 ou 5 anos de idade, enquanto o rapaz era pré-adolescente, tinha 12 ou 13 anos. Então eu e aquele tio de consideração começamos a nos aproximar. Nessa convivência diária, ele tirava proveito da minha inocência infantil. Eu tenho recordações sexuais e eróticas com esse tio. Isso durou uns 3 anos.
Por que acabou?
Um certo dia, alguns familiares começaram a desconfiar e reportaram ao meu pai, que era muito violento e alcoólatra. Ele deu uma surra nesse rapaz e fui até  tirado de casa. Quando eu voltei, o comportamento desse tio mudou drasticamente em relação a mim – ele começou a me ignorar.
E o que aconteceu? 
Bem, era tarde: eu já estava transformado. Já era uma criança “erotizada” precocemente, e isso chamou atenção de outros rapazes. Com 7 e 8 anos, eu já ficava movido quando via outros rapazes, da escola, nus. Sendo assim, comecei a me aproximar de outros garotos. Os rapazes eram mais velhos e, eventualmente, quando lhes convinha, aproveitam-se do meu interesse neles.
Sua família já estava reparando que havia algo de diferente? Foi aí que você percebeu que talvez outro corpo lhe serviria melhor?
Naquela época, década de 1970, minha família não falava muito. Era um assunto tabu. Porém, me tornei adolescente e minha situação ficou mais explícita. Naquela época, pouco se falava de pedofilia e abuso sexual: os homens se sentiam à vontade para realizar suas taras com os garotinhos. Quando eu tinha 13 e 14 anos, eu era um rapaz bonito e andrógino que chamava bastante a atenção. No caminho da escola, diversos carros paravam convidando-me para entrar. E não eram poucos os carros e as motos que faziam o convite.
Isto lhe despertou algo, é isso?
Sim. De repente eu estava em lugares reclusos nos braços de homens peludos e formados. Por conta da minha androginia, meu corpo lembrava o físico feminino, eu desempenhava sempre o papel da moça nas relações sexuais. Foi aí que, inconscientemente, apareceram os primeiros traços de transexualidade em mim.
Isso foi o princípio?
Eu não tinha nenhuma informação sobre a transexualidade. O que eu sabia era que as pessoas, principalmente o meu pai, esperavam que eu tivesse os trejeitos de um ‘garoto comum’. Eu não tinha nem a malícia de vestir as roupas da minha tia, ou qualquer item de mulher. Eu devo ter calçado um sapato de salto-alto em algum momento, mas mais pelo desafio de me equilibrar sobre o par que pela malícia de me vestir como mulher.
Como foi amadurecer sem ser um “garoto comum”?
Quando a adolescência se instaurou, de fato, aos 15 ou 16 anos, apareceram mudanças desagradáveis no meu corpo. Eu perdi aquelas pernas roliças, aquele bumbum empinado, emagreci e apareceram as acnes. Meu cabelo encaracolado mudou, meu nariz cresceu. Estava feio. Fiquei bastante introspectivo. Também me chamavam de veado e magricela na escola. O bullying diminuiu meu rendimento escolar – eu repeti três vezes o último ano do ensino fundamental antes de abandonar os estudos.
E como você reagiu?
Quando eu completei 18 anos eu tive acesso a uma quantia de dinheiro que havia sido guardada para uma faculdade. Gastei tudo naquilo que eu acreditava ser importante na época: eu fiz uma cirurgia no nariz e tinha certeza que todos os meus problemas estavam atrelados a minha aparência. Eu queria ser desejado como era quando mais novo. Me matriculei na academia. Cheguei até a servir o exército, fui voluntário. Estava procurando pela minha ‘masculinização.’ Foi um grande desafio: um homem afeminado e franzino no meio daquele universo viril.
Foi quando resolveu se tornar mulher?
Aos poucos, a minha autoestima foi voltando e tentei me convencer de que o papel feminino não me cabia. Eu já havia me aceitado como homossexual e tinha amigos gays. Mas meu físico magro não agradava os gays. Foi quando eu conheci algumas travestis, que tinham namorados, e eu percebi que o terceiro sexo poderia ser uma opção. Eu tinha uns 19 ou 20 anos e resolvi começar a tomar hormônios. Em três meses eu já havia inchado bastante, principalmente no bumbum e na coxa. Podia até entrar até em banheiros femininos sem ser percebido!
Que tipos de dificuldades encontrou na sua trajetória? Tentou lutar contra?
Fora dos portões de casa, eu assumia minha nova face, mas dentro de casa eu escondia usando roupas largas, passando gel no cabelo comprido, colocando boné. Não demorou para eu ser desmascarado. Fui muito reprimido, até pelos amigos gays e primas lésbicas. Ao mesmo tempo, eu não havia me formado na escola, não tinha diploma de nenhuma área, e eu sabia que minhas amigas travestis se prostituíam. Por pressão e pelo medo de seguir o mesmo caminho delas, cortei os remédios e voltei ao perfil masculino. Eu tentava me convencer de que este era o caminho certo. Cheguei até a ter uma namorada! Transei, mas não senti nada.
Quando voltou ao processo?
Num determinado momento, comecei a me perguntar como estaria se ainda estivesse tomando os hormônios. Assim, aos 23 anos decidi voltar aos remédios e retomar a transformação. Percebi que precisava me dar essa chance, mesmo que eu tivesse que me prostituir – naquela época, essa era a única oportunidade das travestis. Se eu não fizesse isso, entraria novamente num quadro de depressão profunda. Foi aí que eu mudei para São Paulo com uma amiga travesti.
Foi nesse período que, de fato, você virou mulher?
Com a ajuda dela, comprei uma peruca, salto alto, roupas de mulher. Depois de três dias de ônibus, finalmente cheguei em São Paulo. Foi uma mudança radical sair de uma rotina segura para uma atmosfera complicada. Eu entrava nos carros e dizia para irmos no hotel de preferencia deles – eu não conhecia nada! Aprendi na marra como me portar: cheguei até a esquecer de cobrar. Um amadorismo total! Fui descobrindo as coisas pouco a pouco. Ah! Meu nome era Nádia.  E devo confessar que me deu muita sorte (risos).
Você se relacionou com diversos homens que se intitulavam heterossexuais. Que experiências foram essas? E quais eram os perfis deles?
O perfil era bem variado, mas havia uma predominância de pessoas bem instruídas e de classes sociais privilegiadas. De universitários a homens casados. Os clientes eram gentis e queriam ser satisfeitos. Claro que cruzei por pessoas problemáticas – policiais, bandidos – que só queriam se dar bem no final da noite. Me deitei com homens que apoiavam a arma na cabeceira da cama, e diziam: ‘não se preocupe, é só o meu instrumento de trabalho’. Em outras situações, o rapaz confessava que era bandido, ‘acabei de fazer uma fita ali, e gostaria de relaxar antes de voltar pro barraco’. Eu confesso que procurava esquecer a arma apoiada… E não vou mentir que tentava ser muito mais generosa, afinal havia um elemento fatal dentro do quarto.
Quando foi para a Europa?
Aos 32 anos, uma amiga que estava na suíça se ofereceu para financiar a minha ida para a Europa. Viajei devendo U$ 8.000,00 para ela. A gente a chamava de cafetina. Depois de quitar o valor, estaria livre para juntar dinheiro. Cheguei com lugar para morar, telefone na mão, e anúncio no jornal. Fui com o meu passaporte de Antônio e com um corpo de mulher, claro. Naquela época, já estava muito mais madura. Trabalhei em quatro países: Suíça, França, Bélgica e Luxemburgo. Eu tinha facilidade com a língua francesa. Me prostituindo, consegui independência financeira. A cada dois anos, voltava ao Brasil e investia em imóveis. Pouco depois eu já sabia que não queria continuar me prostituindo e que gostaria de ter uma carreira diferente.
Você mudou de sexo novamente. Conte-nos sobre o episódio.
Eu fui uma transexual. O que é uma transexual? Uma pessoa que não se aceita no seu corpo e no seu gênero, e precisa igualar a sua imagem exterior ao seu interior. No entanto, 20 anos depois, eu precisei passar pelo processo inverso. Eu deixei de me aceitar como mulher. Eu estava vendendo algo que eu não acreditava mais. Eu era uma travesti muito feminina, as pessoas muitas vezes não reparavam que eu já havia sido homem. Todo aquele sentimento que havia me instigado tanto, que me fez lutar fortemente, passar por diversos desafios, numa determinada altura da minha vida havia perdido o significado.
Então…
Então, por que eu deveria continuar carregando aquela mulher se ela não era mais tão importante para mim? Eu percebi que não queria mais pagar o preço da prostituição. Eu queria voltar a estudar. Então resolvi voltar ao Brasil e passar por todo o processo de transição novamente. Fiz todas as operações necessárias para voltar a forma masculina, além de me matricular numa academia. Houve um momento que eu parecia uma mulher querendo ser um homem (risos).
O que tem feito e quais são seus planos?
Com 42 anos, fiz um supletivo para terminar o ensino fundamental e cursos de qualificação para o mercado de trabalho. Tirei a minha carteira de trabalho, o que me deu uma satisfação imensa. Aliás, tudo isso que eu fiz após voltar ao gênero masculino, eu poderia ter feito como travesti. Atualmente, sou recepcionista da saúde, num consultório médico.
E o livro? Pretende tocar outras pessoas com ele?
Escrevi o livro, porque eu sentia uma necessidade de contar a minha história, ela estava transbordando de dentro de mim. Terminei de escrever em 2013, mas ele só foi impresso em 2016, porque eu não encontrava nenhuma editora que quisesse publicá-lo. As editoras achavam meu livro longo e, por falar de travesti e prostituição, diziam que não seria um sucesso. Eu resolvi registrá-lo e imprimi-lo por minha conta – eu sentia que se eu demorasse mais um pouco, a história ficaria velha.
Você acha que deu um exemplo?
Isto é muito importante: eu não pretendo ser um exemplo para as outras travestis. Essa é a minha história. Singular.
*Antônio ainda está procurando por uma editora para publicar seu livro. Alguém se habilita? :

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